Intransito 2019 / Dum ponto de vista dramatúrgico


Extrato do artigo: Intransito 2019 / Dum ponto de vista dramatúrgico.
Por Massimo Milella
Locacritica.com
2020/01/15

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Vejamos agora a poderosa dramaturgia dançada de Chiara Taviani e Henrique Furtado Vieira, que, com Stand still you ever-moving spheres of heaven, comovente citação do escritor de tragédias elisabetanas Marlowe, uivada pelo seu doutor Fausto numa noite estrelada antes de confiar a sua alma ao diabo - provavelmente uma homenagem dos dois coreógrafos ao paradoxo de um espaço atemporal – oferecem-nos, na minha opinião, o trabalho mais elegante, mais concretizado e mais ambicioso entre os participantes do concurso.
Aqui, o texto não existe previamente à sua encenação; o pastiche linguístico em que vemos um inglês mastigado, desenhado e contraditório, também implícito na coreografia, está no centro de uma peça experimental e convincente que brinca com um elemento fundamental da pesquisa contemporânea: a ironia do nonsense.
A compreensão racional de que somos privados é compensada por um exercício de inteligência humorística, simultaneamente aristocrática e infantil.
Taviani e Furtado trabalham de maneira incomum, apoiando-se num surrealismo que remete para o Flying Circus dos Monty Python, resultando numa escrita coreográfica precisa e muito eficaz.
A dramaturgia aqui é uma ação dita, ela não constrói significado, mas mal-entendidos. E é nesses mal-entendidos que o próprio ponto de vista dos artistas se baseia para sair do mecanismo teatral - e do dualismo - liberando os corpos na sociedade cotidiana: de repente, Furtado é projetado em Lisboa, no metro, imóvel e em movimento, paradoxo da realidade.