Diário de uma quarentena com ABC
« Estive a reler o que escrevi nos dias anteriores, esta epidemia tem que ver com tudo, e vale a pena falar de tudo, precisamente porque representa um ponto zero, literalmente um planalto, de onde tudo pode renascer. » (março de 2020)
Criação, escrita Henrique Furtado Vieira ///
Apoio Ballet Contemporâneo do Norte - (RE=)INICIAÇÃO ///
Agradecimentos a O Rumo do Fumo, Luís Guerra, Ana Renata Polónia, Vera Mantero, Vera Nunes, Catarina Real, Céline Cartillier, Susana Otero, Rogério Nuno Costa, João dos Santos Martins ///
Bem sei que sem multidões, não faz sentido procurar o Wally, a razão de ser concetual e comercial de “Onde está o Wally?” é a existência da multidão, a multidão como massa que esconde o indivíduo, e da qual ele precisa para se destacar. Um livro “Onde Está o Wally? – Em quarentena” seria irrelevante e não teria piada nenhuma – o Wally só é engraçado de se encontrar se estiver no meio dum magote de gente.
Há de facto uma sensação de que os nossos espaços públicos zombificaram…. Volto a olhar pela janela, a rua está agora absolutamente vazia, parece que fomos atirados para dentro do Resident Evil. «Onde é que eles estão escondidos?!». Esboço um sorriso: pelo menos vinte anos passaram desde que apertei os botões da PlayStation pela última vez, para abater zombies depredadores da cidade-fantasma Raccoon City, forçada a colocar-se sob lei marcial por causa de um vírus mutante.
Tanto a leitura de “Onde está o Wally?” como o divertimento proporcionado por “Resident Evil” seriam impensáveis num regime totalitarista – ambos têm como ponto crítico a celebração do indivíduo, isto é, a sobreposição do diferente ao homogêneo, do peculiar ao uniforme, e dos Wallies aos zombies.
Há quem diga que por um vírus estamos prontos a abdicar de tudo, inclusive da nossa liberdade, e a confiar nos piores autoritarismos. Pessoalmente confio que a adição por jogos-vídeo vai disparar graças a esta quarentena, e salvar-nos da febre fascizante.
Com estes mergulhos nas minhas referências infantis, quase me olvidei de que hoje, o zombie sou eu. Maldita febre.
Neste, avistamos um navio naufragado, no meio de blocos de gelo pontiagudos, numa paisagem glaciar sem fim: uma espécie de antepassado do Titanic. No episódio Titanic, as pessoas tentaram desesperadamente abandonar o navio, tal como em qualquer naufrágio. Saltar pela borda fora, apesar de ser uma opção aterradora, era a única opção.
Contudo, o navio nem sempre foi (e é) espaço que devemos abandonar, pelo contrário, também é por vezes espaço que estamos interditos de abandonar, apresentando-se como uma ferramenta eficaz de confinamento e de contenção da circulação. Com efeito, o termo quarentena advém da prática medieval de manter em isolamento durante quarenta dias, nos portos em que atracavam, os navios procedentes de determinadas áreas, de maneira a evitar a propagação de epidemias e pestes. Esta prática ainda é nossa contemporânea(!) – é só olhar para a praga de cruzeiros em quarentena desde o início desta pandemia de Covid-19, sendo o mais conhecido o Diamond Princess. São quarenta dias em que as pessoas não podem sair do navio, porque cada navio é um potencial covil viral, e desembarcar pode significar disseminar a morte em terra.
É curioso, historicamente o navio é palco duma controvérsia do abandonamento, surgindo ora como perigoso meio de transporte que somos obrigados a abandonar; ora como recinto ao serviço da saúde pública, que nos é interdito abandonar; ora ainda como espaço-veículo de vida, que nos permite abandonar a terra (ou a falta dela) em agonia, tal como na Arca de Noé. Isto é porque o navio está enigmaticamente e mitologicamente ligado à nossa própria sobrevivência enquanto espécie. É simultaneamente um vetor de fuga e um espaço fechado aterrador. É coincidentemente espaço que nos abriga de ameaças – físicas e existenciais -, e é ele próprio ameaça.
O nosso gato C. é o único da casa que permanece impávido e sereno, observo-o a lavar-se no seu cesto, com a língua lambe a pata esquerda e esfrega o focinho, e depois lambe a pata direita e esfrega o focinho, et cetera.
Parece seguir as recomendações da DGS: lavar bem as mãos. O problema é que para lavar bem as mãos é obrigado a levar as mãos à boca (e depois ainda esfrega as mãos no focinho); neste caso lavar e levar as mãos à boca é a mesma coisa, ou seja, o gato infeta-se e desinfeta-se simultaneamente. Não deve ser fácil ser felino e ter de enfrentar uma epidemia, porque surge um dilema literalmente existencial: como lavar as mãos sem as levar à boca? Será possível manter um mínimo de higiene sem ter de, digamos, morrer? Serão higiene e vida dois estados conciliáveis em caso de pandemia felídea?
Não leves a mal C., mas fico feliz por não ser da tua espécie e por não ter que responder a tais questões - ainda assim, fui eu que as formulei… Que hei de fazer? Neste momento, só me restam mesmo como escape, para desanuviar a pressão pulmonar e familiar, as excursões biocêntricas.
Dia 24 de março de 2020, gostava de ser animal portador-são neste momento, tipo pangolim: ter o bicho, mas aquilo não me afetar minimamente, ao ponto de eu nem saber que tenho o bicho.
Uma amiga respondeu-me: «Eu gostava mais de ser animal portadora de anticorpos. Já li algures que os próximos passos vão ser começar a testar não o vírus, mas os anticorpos que é para deixar ir para a rua o pessoal que tem anticorpos, que é coisa que faz muita falta por aí nessas ruas!!! Vão ser exércitos de anticorpistas a fazer o trabalho todo que aqueles que ficam em casa não podem fazer!!!»
Já tinha ouvido falar dos paraquedistas, mas nunca dos anticorpistas…
Se o paraquedas é aquele que protege contra uma queda, o anticorpo deve ser aquele que afasta outros corpos, que garante o isolamento em relação a corpos maléficos, numa espécie de quarentena biológica interna.
É caso para se dizer: (macro-)isolamento combate-se com (micro-)isolamento.
Dia 25 de março de 2020,
A. - E por que é importante para ti falar sobre isso?
EU - Eu não acho que seja importante.
A. - Não é?
EU - Eu só quero fazer disso uma peça, mas não acho que seja importante.
Dia 26 de março de 2020, o capitalismo não perdeu tempo, nunca perde, aviso que já apareceram todo o tipo de produtos que criam valor com a imagem do coronavírus: canecas, bolsas, bonés, t-shirts, cuecas, lenços descartáveis, papel de parede e até preservativos.
Nós hoje encomendámos duma pastelaria francesa, via UberEats, uns pralinês multicolores em forma de coronavírus. Os ratings elevados do mestre pasteleiro deixam-me confiante. Além disso, as fotos dos pralinês são muito estéticas. Depois de Walter Benjamin nos ter elucidado acerca da reprodutibilidade da obra de arte, alguém nos terá que esclarecer sobre a reprodutibilidade da imagem do vírus (cuja impercetibilidade só torna a aura mais difusa).
Em cada um desses pralinês paira a ideia do vírus como objeto mental fantasmagórico que assombra o nosso quotidiano, a lembrança da fragilidade insuportável da nossa existência, o sentimento de que podemos ser vítimas, num avião, num teatro, ou numa pastelaria francesa, de um ser por definição invisível.
Igualmente invisível é a mão do mercado, que admiro profundamente por conseguir sublimar as nossas maiores assombrações.
Dia 27 de Março de 2020, hoje recebi um SPAM com a seguinte mensagem:
«Apelido no site: GostosaDelicia
Anos: 41
Sobre mim: Morena muito adorável. Tenho um corpo firme e lindo. Lindo rabo, seios lindos, uma cona a ferver e a precisar de macho para me foder. Tenho uma simpatia exuberante, e uma energia que me faz ser super gostosa. Sou bem carinhosa, mas muito safada.»
A luta de classes continua. Uns mantêm-se em casa, em isolamento e segurança. Outros, os que lutam pela sobrevivência, os de ‘lindo rabo’ e ‘cona a ferver’, percorrem a cidade para providenciar alegria e prazer.
No que me diz respeito, os meus níveis libidinosos estagnaram, pensei que esta reclusão fizesse disparar a minha tesão, mas não, talvez se deva ao facto de não cruzar pessoas, além das que vivem comigo, ou expressando-me por outras palavras, tenho andado sexualmente apaziguado, o isolamento é ótimo para tratar vícios, dizem que muita gente tem parado de fumar, será verdade? Se toda a gente se estiver a sentir como eu, então os outros, os trabalhadores do sexo, devem estar a lidar com um colossal défice de clientes… E já sabemos, quando há crise capitalista na procura, a oferta fode-se. Ou neste caso, deixa de se foder.
Ainda assim, esta crise não deixa de ter contornos eróticos, ninguém se pode tocar, só contactamos fisicamente via objetos que agem como intermediários do toque - pacotes de cereais, fruta, queijo mozarela, e outros produtos alimentares ou farmacêuticos, objetos à priori desprovidos de voluptuosidade - e que se revestem duma hipotética camada fina e invisível de coronavírus SARS-CoV-2, o que só alimenta mais te(n)são.
Dia 28 de março de 2020, a respeito de um vírus “democrático”,
Uns estão em casa a apanhar uma seca. Outros estão numa seca de hipoteca.
Uns queixam-se de estar “encarcerados” em casa. Outros sonham em ter uma casa.
Uns papam séries na Netflix. Outros não têm o que papar.
Uns aproveitam para paleo, macrobiótico ou vegano cozinhar. Outros têm a sopa dos pobres para engordar.
Uns aproveitam para fazer Pilates. Outros perdem peso a entregar pralinês e chocolates.
Uns dizem que o vírus é democrático. Outros estão-se a cagar para democracia neste momento profilático.
Uns não sabem o que fazer. Outros estão a procurar o que fazer.
Uns estão em lay-off. Outros entraram em insolvência, e mantêm-se vivos com esmola e Smirnoff.
Uns andam a coçar os tomates. Outros andam com máscara e luvas de proteção a apanhar os teus tomates.
Uns têm direito a subsídio de desemprego. Outros foram bem fodidos por um filho da puta dum morcego.
Uns estão em teletrabalho ou de férias. Outros na miséria.
A. – Não tens medo de viver em piloto automático?
EU - Não tens medo de viver em piloto automático?
Dia 30 de março de 2020, hoje vamos em 140 mortos, e eu participei num treino de dança, generosamente dispensado, via Zoom, por uma bailarina nórdica. Começou por uma longa prática de estremecimento-do-corpo-todo, e depois executámos vários exercícios de fortalecimento e estiramento musculares. Desfrutei muito.
Desde sempre, a comunidade da dança soube adaptar as suas manutenções corpóreas em todas as circunstâncias, inclusive em tempos de guerra. Por exemplo, durante a ocupação de Leningrado pelos nazis, em 1941-1944, que foi um autêntico genocídio - morreram alguns milhões de pessoas, e outros tantos tiveram de evacuar a cidade -, as bailarinas estudantes do Instituto coreográfico do estado de Leningrado treinavam quotidianamente onde conseguiam, designadamente no meio de campos de cultivo que iam atravessando: eram colocadas estacas de madeira no solo a fazer de chão de dança, e como barra usavam-se as cercaduras delimitadoras dos terrenos… E nós ainda achamos que é desafiante ter as nossas aulas cibernéticas via Zoom, a partir das nossas salas de estar ultra-mobiladas!
Às vezes as pessoas esquecem-se, mas para chegarmos onde chegámos, tiveram de morrer milhões e milhões de pessoas; tiveram de dançar outros milhões e milhões de pessoas; às vezes os dois ao mesmo tempo: de tanto dançarem morreram.
Deixem-me explicar: em 1518, houve uma famosíssima epidemia de dança em Estrasburgo. Por razões obscuras e nada consensuais, uma mulher pôs-se a executar movimentos frenéticos numa rua da cidade. Quando deram por ela, começaram a juntar-se outras pessoas e progressivamente o “surto” alastrou-se. Aparentemente, por volta da Idade Média, nesta região da Alsácia, aconteceram muitas epidemias coreomaníacas deste gênero. Dum ponto de vista antropológico, parecem ser rituais que se manifestam em ligação a crenças locais, crenças pagãs de resposta à necessidade de dança, as pessoas dançavam de forma indominável e algo sinistra, uma horda de Valeskas Gert, espumavam da boca e dançavam até desmaiar de cansaço, e muita gente dançava até à morte. Um vírus fatal, portanto.
Quando li sobre isso, lembrei-me imediatamente daquele filme documental de Jean Rouch, Les Maîtres Fous (1955), em que praticantes do movimento religioso Haouka, nos arredores de Acra, levam a cabo um ritual em que dançam, fazem trocas de papéis, imitando os seus “mestres”, os colonos, e espumando descontroladamente da boca. É uma forma de fazerem pouco dos colonos e de os “castigarem”. É uma maneira de expurgar a opressão a que estão submetidos, e de extravasar o sentimento de injustiça, reagindo performativamente.
Estas epidemias de dança medievais deviam assemelhar-se a este ritual dos “mestres loucos”, deviam ser reações de desespero antiautoritário, em relação às condições míseras em que se vivia. Era uma forma de escapar ao impensável agindo impensavelmente; convocando o insólito como reação ao inconcebível.
Pessoalmente, quando estou em choque com algo, costumo ficar alegremente histérico. Nesses momentos, preciso duma descarga, e a dançomania passa-me pela cabeça, como forma de libertar a dor, física ou psicológica. São também nesses períodos que me sinto mais “contagioso” – não é por acaso que é nessas alturas de grande dor que me aproximo mais das pessoas e reforço laços de amizade.
Se esta quarentena durar muito ou se a crise socioeconómica se alongar, vai haver por aí muita gente em coreomania. Salvo os bailarinos, claro, que estão imunizados: uma crise coreomaníaca dos bailarinos seria um fenómeno redundante.
Dia 31 de março de 2020,
A. – Mas porquê uma peça de dança?
EU - Instinto.
A. - Instinto de sobrevivência?
EU - Não, instinto de criação. Eu sigo as convenções da profissão…. É isso mesmo, toda a gente cria muitas peças, somos alienados pela criação.
A. - Então, como artista, simplesmente ages como todos os outros artistas? Se todos os artistas se mandarem de um penhasco, tu também te mandas?
…
EU - Se tiver um para-quedas, sim.
Dia 1 de abril de 2020, hoje esteve frio, o apartamento arrefeceu. Recebi uma mensagem dum colega a dizer que estava emocionado, que o planeta se está a regenerar a olhos vistos, que a neve está por cá de novo nesta altura do ano, que na Alemanha é igual, as lontras estão a reaparecer na ria Formosa, que os sobreviventes disto não se esqueçam do que este momento nos está a querer dizer…
Muita gente acredita veementemente que estamos a viver um momento de transição, e que este evento inaugurará para o ser humano um novo processo de conhecimento mais luminoso (com mais consciência, mais ecologia, mais democracia, et cetera), como se esta quarentena representasse uma prática ritualística do início e da passagem: uma iniciação. Eu cá acho meteorologicamente normal ainda haver dias frios em inícios de abril.
Tenho estado atento aos recantos do meu apartamento. Ontem reparei que há um ínfimo espaço entre a lateral do armário e a parede do quarto. Nunca me tinha apercebido desse infra-espaço escondido, tão isolado. Impenetrável, mantém-se obscuro 24 horas por dia, cheio de dúvidas e segredos.
E fecho o dia com um poema (A Nuvem) de Carlos Poças Falcão, que parece ter sido escrito propositadamente para este momento:
O quarto agora é o mundo todo
Nem maior nem menor
Que o mundo inteiro
Dantes ia eu
Aos múltiplos lugares
Venham agora
Esses lugares a mim
Dia 2 de abril de 2020, hoje o calor voltou, fui ao parque com a B., o passeio rapidamente se tornou numa fuga impossível aos corredores, joggers e caminhantes desportivos, obrigando-me a um estado de alerta extenuante. Mas eles, eles nem por isso tiveram o cuidado de nos evitar, parece que têm rotas pré-definidas que por nada no mundo estão prestes a alterar.
A dada altura, cruzámos uma jovem jogger duns 20 e tal anos, diria, que passou por nós a uma distância de aproximadamente 2 metros, roçando o limite mínimo recomendado pelas autoridades de saúde. Não pude deixar de me sentir indignado e o meu corpo estremeceu de terror face à impossibilidade de a esquivar, mas não disse nada. Ela ia rápido e com headphones. E eu tenho tendência para recalcar a indignação. Nasci, apesar de tudo, na década de 80. Nós, os da década de 80, nunca treinámos os nossos ímpetos revolucionários, não houve muitas oportunidades para nos indignarmos a partir dos anos 2000, a adoção do euro como moeda única inaugurou em Portugal aquilo que viria a ser uma sequência de desencantamentos em paz, choques socioeconómicos sem grande desordem política - mas talvez esta seja a leitura de alguém que teve uma infância despreocupada e que atingiu a maioridade em 2006 sem grandes mossas (fica sempre bem dizer isto nos dias de hoje, é uma forma de redenção confessar os privilégios que tivemos).
A verdade é que os meus envolvimentos ativistas foram um grande fiasco – num caso, desembocaram em querelas internas sem resolução e no outro, em revelações de desvio de fundos por parte de entidades que apoiávamos. Também nunca fui um artista que transpirasse indignação e empenhamento político explícito nos seus trabalhos, provavelmente por desconfiar da eficácia da arte panfletária, e por ver na arte uma espécie de práxis da desmaterialização – por um lado, ver perdendo, e, por outro, ver a aparecer o que está dissimulado, como nos explica Didi-Hubermann.
Admiro as pessoas com poder de encaixe – talvez por eu próprio não ter essa aptidão. Acho que a arte da diplomacia - e a existir, a diplomacia da arte - requerem um certo amolecimento propício à escuta, e até à contemplação.
Dia 3 de abril de 2020, sobre “justiceiros de varanda”,
ultimamente tem havido muito policiamento entre cidadãos. Hoje passeávamos no parque, na sua parte mais alta e que dá para as traseiras duns prédios, quando uma mulher numa das varandas (mais uma privilegiada amolecida, é fácil falar quando se tem varanda com vista para o parque) nos interpelou, aos berros, dizendo-nos entre outras coisas, que enquanto houvesse gente como nós, a quarentena nunca iria acabar. Recomendei-lhe educadamente que fosse ler a legislação, na qual consta que podemos sair de casa para acompanhamento de menores em atividades ao ar livre e passeios de curta duração.
Na China, durante esta crise sanitária, o governo tem outorgado autoridade a alguns cidadãos próximos do apparatchik, à escala dos seus bairros, para verificarem que ninguém sai de casa, uma espécie de milícias para manter as ruas vazias…. Há gente que está ávida deste poder controlador, castigador, moralizador; e que davam tudo para estar acima da lei num momento como este. Felizmente a maior parte desta gente não se tem metido na política…. Só em regimes autoritários, tanto de esquerda como de direita, é que o Estado outorga poder a cidadãos para que controlem outros cidadãos.
Foucault ajuda-nos a ver isto dum ponto de vista histórico em Surveiller et punir, capítulo. III, « Le panoptisme ». Nele, Foucault explica que as pestes, as epidemias, as crises e o medo do caos, sempre estiveram ligados a dispositivos disciplinares.
Aqui vão, de acordo com um documento do final do século XVII, as medidas que deveriam ser tomadas caso uma peste eclodisse numa cidade:
«Primeiro, um confinamento espacial estrito: fechando, é claro, a cidade e a "terra", a proibição de deixá-la sob pena de morte; matando todos os animais vadios; divisão da cidade em bairros distintos: em cada um é outorgado poder a um gerente de bairro. Cada rua é colocada sob a autoridade de um administrador que a vigia; se este a deixar, é punido com a pena de morte. Num dia definido, todos os cidadãos são ordenados a trancarem-se em casa, e ficam proibidos de sair, caso contrário são castigados com a pena de morte. O próprio administrador é quem fecha a porta de cada casa pelo lado de fora; ele leva a chave e dá-a ao gerente do bairro; este guarda-a até o final da quarentena.»
O nome do ensaio, Surveiller et punir – vigiar e punir -, diz tudo. É a necessidade de autoridade que determina o poder, a vigilância e a punição.
Dia 4 de abril de 2020, sobre exercício…
eu também sou corredor / jogger, tenho percorrido as escadas do meu prédio, desço as escadas a correr e depois volto a subi-las, faço isto ininterruptamente umas cinco vezes ao final do dia (moro no segundo e último andar). Considero-o uma espécie de exercício sisifiano. Faz-me bem pôr-me na pele dum desportista mitológico…. Por vezes pergunto-me: será que a realização do absurdo exige tanto esforço físico? Camus responde: "Não. Exige revolta". Reconheço que me faz falta essa consciência de classe(s) enquanto faço desporto…
Lembrei-me há bocado do Poéticas do Espaço, de Gaston Bachelard, um estudo fenomenológico da imaginação através da casa e dos seus espaços: a cave, o sótão, as gavetas, os armários, os baús, os guarda-roupas, e os cantos mais recônditos dos nossos lares. Tenho de o voltar a ler durante esta quarentena, este livro é essencial para continuar subliminarmente conectado ao espaço onde vivo. Para permanecer artista neste momento, é necessário preservar e fomentar um olhar poético perante a aparente banalidade e repetibilidade do recetáculo domiciliar, cavar o espaço doméstico dentro das suas fronteiras, para entrar com mais precisão nas coisas: portanto exercitar também o olhar além de descer e subir escadas como um troglodita.
Segundo o autor, «The house shelters daydreaming, the house protects the dreamer, the house allows one to dream in peace. »
E deixem-me só terminar transcrevendo aqui algo que Richard Kearney diz na sua introdução ao Poéticas do Espaço e que parece ter sido escrito para este momento (são já vários os textos que têm esperado décadas para atingir, agora e finalmente, o expoente da sua significação: o coronavírus fez despontar a quintessência do literário): «And let things be. Now more than ever we have need for intimacy, secrets, sites of interiority and contemplation where we can practice what Baudelaire – one of Bachelard’s favorite poets – called the art of ‘fertile laziness’. » Talvez seja este o exercício a que eu mais aspiro nesta quarentena, o da preguiça fértil.
Dia 5 de abril de 2020, hoje uma colega mandou-me um excerto dum poema de Carlos de Oliveira que vai falar por mim:
(...)
Aceito a minha vida?
Ou mexo no candeeiro,
desvio-o alguns centímetros
na mesa, altero
as relações das coisas,
afinal tão frágeis
que o simples desvio
dum objecto pode
romper o equilíbrio?
Pego no telefone
e grito ao primeiro
desconhecido: ouves-me?
Ou deixo tudo
tal como está,
medido, quieto
no rigor do quarto,
e eu hesitante
entre o soalho e o tecto?
Desloco o cinzeiro
sabendo que posso
matar mandarins,
provocar cataclismos,
fracturas, amores,
eclipses, sonhos,
com a ponta dum dedo?
Ou apago a lâmpada
eléctrica e entro
no mesmo torpor
que as flores do tapete,
a fruta dos quadros,
o frio, o bolor,
no chão, nas paredes,
o poema na mesa,
a mesa no espaço
do quarto comprado
mês a mês? Confundo
o aluguer e o tempo,
deixo-me ser
em cada milímetro,
em cada segundo,
do quarto, da vida,
o outro objecto
chamado inquilino?
Ou desencadeio
a insurreição
mudando de sítio
o meiple, a cadeira,
mudando-me a mim?
Dia 6 de abril de 2020,
EU - Achas que estamos a trabalhar ou de férias?
A. - Estamos a trabalhar.
EU - E porquê?
…
A. - Talvez a palavra trabalho se preste a várias interpretações.
Dia 7 de abril de 2020,
EU - Amor, anda lá.
A. - Não posso, estou a trabalhar.
EU - Talvez seja necessário trabalhar para amar, em vez de amar trabalhar.
…
A. - Talvez seja necessário estares calado.
Dia 8 de abril de 2020, interesso-me muito pela pré-história e dou sempre por mim a fantasiar e a especular como é que as pessoas viviam nessa altura, como é que executavam ações que agora consideramos básicas. Por exemplo, hoje surgiu-me esta dúvida: onde é que as pessoas pousavam os bebés durante a pré-história? Não havia trocador de fraldas, nem espreguiçadeiras da BabyBjorn, nem berços. Pousavam-nos no chão? Ou andavam sempre com eles ao colo? E nesse caso, como aguentavam?
Acho que hoje despoletei uma hérnia discal, por carregar a minha filha ao colo intermitentemente desde o início do isolamento. Estima-se que cerca de 70% dos portugueses vai sofrer de dor de costas em algum momento da sua vida. Aposto que esta quarentena, e o consequente sedentarismo radicalizado, vão elevar o valor em pelo menos dez pontos percentuais.
Lombalgia meets ócio interminável.
Dia 9 de abril de 2020, hoje tive uma epifania, apercebi-me que sem gravidade não teria genitália.
Reparem: o pénis é um membro alongado e com grande capacidade de irrigação, precisamente porque descai sob o efeito da gravidade, igual a 9,806 65 m/s² no planeta Terra. E os testículos têm forma oval e pendem porque estão submetidos ao efeito da gravidade (o esquerdo pende mais do que o direito).
Dou por mim a pensar. Como seria a minha genitália se tivesse nascido e crescido no espaço? Seria capaz de excretar urina? Seria capaz de solidificação e de irrigação intensa, conseguiria expelir o meu sémen, e disseminar o meu material genético pelo espaço intersideral? Arranjaria forma de me reproduzir?...
O isolamento tem destas coisas. Põe-nos a pensar no que seria possível no inverosímil.
E neste sentido contrasto claramente com Robinson Crusoe, cujo isolamento numa ilha deserta só serviu para racionalizar tudo e mais alguma coisa – a começar pela origem das coisas.
Dia 10 de abril de 2020, hoje sinto-me assim:
Dia 12 de abril de 2020, está um sol escaldante, ninguém diria que a morte anda à solta. Mas anda, nós é que não a vemos. Isso é que é chato na morte, anda sempre com o seu manto de invisibilidade.
Um amigo meu transmitiu-me este facto irónico: «Tudo isto nos está a atingir no período da Quaresma, um período tradicionalmente dedicado à introspeção, reflexão e meditação.»
Boa Páscoa?
Como disse algum profeta da quarentena: «Se você não sabe ressuscitar, fique em casa.»
Dia 13 de abril de 2020, o corpo atrofia em casa. Não há descargas, nem sequer sexuais. Vida de monge. É bonita esta imagem do ermita impassível, mas tem as suas repercussões musculares. Sinto que me estou progressivamente a tornar numa lesma. Talvez, quando isto acabar, saia de casa a rastejar pelas ruas, sem dignidade e sem tónus. Estou a viver uma regressão física, num retorno aos básicos evolucionais.
O problema é que sou lesma, mas continuo a enfardar tudo o que consigo açambarcar (yes, consegui incluir a palavra açambarcar no meu diário!) aquando dos meus assaltos ao supermercado. Sou um invertebrado açambarcador.
Cada vez mais me sinto como aqueles seres humanos obesos do futuro do filme Wall-E, que apenas se deslocam sentados, consumindo freneticamente tudo o que se mete à sua frente. Aliás, tal como nós, também eles vivem num planeta inabitável; no caso deles, por razões ecológicas – o planeta tornou-se ecologicamente inabitável; no nosso caso por razões epidemiológicas. E também eles vivem confinados, numa estação espacial ultrassofisticada, tal como nós vivemos nas nossas casas hiperdigitalizadas, gadgetizadas e ecrã-ficadas.
Ninguém vai querer trabalhar comigo depois disto. Não há nada a fazer, é aceitar o retrocesso biológico. Mas em direção ao futuro!
Dia 14 de abril de 2020, dentro do pangolim fofinho rumina o demónio. Não há dicotomias no mundo viral.
Dia 15 de abril de 2020, hoje estive a ler jornais online desinformadores, são os meus preferidos, um casal foi multado em Itália por quebrar a quarentena ao fazer sexo num carro às 10h30 da manhã. O homem e a mulher, que não têm a mesma morada, foram multados em 800 euros. É caso para se dizer: foder dá multa, mau estacionamento não dá (a EMEL suspendeu o pagamento de estacionamento durante a quarentena) - e a multa não é das menores, neste caso é mesmo para quem pode, e quem pode pode, e quem pode fode…
Toda a gente tem noção disto, sexo automobilístico é sempre um exercício desconfortável e até doloroso, exige algum contorcionismo, é difícil concentrarmo-nos no prazer do coito quando temos a articulação coxofemoral na sua amplitude de rotação máxima, um pé estatelado na cara e os corpos aglutinados meio-sentados, meio-deitados, numa copulação desordenada.
Além disso, são precisos uma vigilância acrescida e um esforço de auto-ocultação, não vá algum transeunte, ou pior, um polícia, ter um olhar indiscreto. Mas o pior do sexo automóvel, aquilo que é verdadeiramente insuportável, e que nos faz optar por outros tipos de sexos, quando possível, é que o ar aquece vertiginosamente rápido, os vidros embaciam num ápice, a humidade viscosa apodera-se do ambiente geral, e num piscar de olhos sentimos que estamos no interior abafado dum banho turco, mas sem a fragrância a eucalipto; antes levamos com um concentrado agoniante de cheiro a sexo – como se nos tivessem a enfiar um óleo essencial de genitália pelas narinas adentro.
Estes atos de javardice improvisada em confinamento automóvel – confirma-se que qualquer tipo de confinamento é infernal -, só sabem bem quando a fome aperta mesmo muito. O que mostra que as pessoas andam a viver um período atroz de austeridade sexual, além da austeridade socioeconómica que já nos é mais familiar, são as horas do dia a que isto ocorreu: quem tem pachorra libidinal para organizar um encontro venéreo num automóvel ligeiro às 10h30 da manhã?
Já sabíamos que “a romantização da quarentena é um privilégio de classe"; o que não sabíamos é que a romantização sem classe é um privilégio da quarentena.
Dia 16 de abril de 2020, hoje criei um grupo Whatsapp para trocar informações, textos, imagens, ideias e conceitos, com colegas. É verdade que os grupos Whatsapp podem ser fonte de angústia, mas se os abordarmos anarquicamente, e se não esperarmos nada em retorno, podem ser apenas um canal de passagem de matéria (viva e morta) para quem quiser e puder: uma espécie de esgoto ao contrário.
Não tenho nada a perder, em última análise o grupo morrerá e será apenas mais um de entre milhões de grupos Whatsapp que morrem todos os dias: há para aí um cemitério de grupos Whatsapp que nunca mais acaba.
É que as redes sociais encontram na morte o seu conceito dialético: operam a partir da efemeridade – de grupos, de contactos, de ideias e de projetos -, e ao mesmo tempo dependem da conservação (dos dados), graças ao big data como memória à escala planetária. O que interessa nas redes sociais (e às redes sociais) é o que permanece após o desaparecimento.
É o caso da página na rede social chinesa Weibo de Li Wenliang, o médico chinês que alertou os colegas para o novo coronavírus e acabou morrendo da infeção, tornando-se um dos mártires da doença. A última publicação do médico tornou-se um lugar de luto viral, nos dois sentidos da palavra viral.
Um dos utilizadores interpela o defunto Dr.Li: «O meu pai partiu hoje de manhã para um sítio de onde nunca mais pode voltar. Vim conversar consigo para ver se me sinto um pouco melhor. Você está bem por aí?».
«Por aí»?... A que espaço estará este utilizador a referir-se? Estará a aludir ao céu, espaço mitológico fora do tempo onde as almas descansam em paz para toda a eternidade? Ou estará a referir-se à página de Li na rede social Weibo? Ou será que, nos tempos que correm, os dois sítios são o mesmo sítio?
Será que o céu se tornou e-céu? Será possível falar de e-alma?
É que neste caso, Li morreu, mas não e-morreu. Muito pelo contrário, nunca esteve tão e-vivo. Ou melhor, morrer do vírus tornou-o viral na e-vida.
Acredito que vale a pena investir ao máximo nas redes sociais, e criar uma identidade de que nos orgulhemos, porque é a parte de nós que vai sobreviver à passagem do tempo. Pessoalmente preocupo-me com o meu legado digital post-mortem… Que página Facebook quero deixar aos meus filhos?
Por outro lado, já há empresas que organizam e animam velórios digitais. Nestes, em geral ocorrem chats e Zoom meetings a partir de recordações e imagens que as pessoas vão publicando. Um pouco à imagem dum verdadeiro velório, onde se vão trocando demonstrações de afetos e histórias inesquecíveis sobre o defunto, mas no espaço virtual.
Mas há mais: as famílias obtêm um código QR, a ser colocado na lápide, no caixão ou na urna das cinzas. Ao aproximar o telemóvel, pode-se então aceder a tudo o que foi partilhado digitalmente aquando do velório.
E termino com esta frase de Thomas Macho: “Morrer significa ser transformado na sua cópia”.
Dia 17 de abril de 2020, hoje andei a percorrer o Facebook com a minha conta falsa, de vez em quando faço isso, é uma forma de não estar arredado do que se vai passando nas redes sociais sem ter de me comprometer com uma identidade verdadeira, posso ser um mero espetador, ou até comentar algum post, escondido por baixo do meu capote cibernético, e se as pessoas me insultarem é o meu algoritmo que encaixa, e portanto custa muito menos. Há quem me acuse de ser cobarde, de teatralizar a minha personalidade, muita gente me escreve “não falo com perfis falsos”, mas na realidade não sou (assim tão) cobarde, gosto somente de evitar brigas desnecessárias, acho que o mundo seria um lugar melhor se todos usássemos apenas perfis falsos nas redes sociais. Acho que há uma dimensão carnavalesca nesta proposta, quer dizer, o mundo seria um lugar melhor se pudéssemos andar “vestidos” como nos dá nas ganas, e se assumíssemos os nossos avatars. As pessoas andam muito mais relaxadas quando aceitam (e incorporam!) que a identidade é uma coisa flexível. E creio que, no caso das redes sociais, falsa.
Dia 18 de abril de 2020, hoje o meu algoritmo voltou a atacar, observei que há dois statements que imperam nas redes sociais neste momento, por um lado o imperativo “fica em casa”, por outro o ludibriador e cínico “vai ficar tudo bem”.
O que têm estes dois statements em comum? O seu tom indubitavelmente paternalista, a dizer-nos não se preocupem fiquem em casa e vai correr tudo bem, como aqueles enfermeiros que dizem aos pacientes em doença terminal que vai correr tudo bem se tomarem os comprimidos (mas na realidade não têm nem a certeza da eficácia dos comprimidos, nem a mais puta ideia do que queira dizer correr tudo bem).
Isto foi exatamente a forma como me comportei com o meu avô antes de ele falecer – e na altura, levei um par de estalos, bem dados. Estes statements apoquentam-me, porque são daquelas festinhas mimo-sedativas, que em geral precedem uma grande lambada – social e económica - que nos deixa de rastos.
Esta condescendência é também uma maneira fofa de dizer aos outros o que podem e não podem fazer. Daí que “passeios de curta duração” se tenham convertido num assunto fraturante nos tempos que correm.
Em geral, o negacionismo e o autoritarismo vão de mãos dadas. E infelizmente, não em passeios de curta duração.
Dia 19 de abril de 2020, ando imparável, mais uma tarde nas redes sociais, na peixeirada ideológica; onde eu sou especialmente populista é na minha utilização das redes sociais, sou o primeiro a manifestar-me assim que há molhada, a porrada cibernética é a que menos me custa, sobretudo quando se ataca de perfil falso.
Isto acontece porque temos estado a viver há demasiado tempo sem inimigos…. Reparem, a guerra fria já acabou há muito tempo. Demasiado tempo! E ultimamente o terrorismo islâmico parece ter-se deslocado para terras longínquas, o que é muito boring para quem precisa de expurgar medos geopolíticos primordiais.
Por isso queria agradecer ao coronavírus SARS-CoV-2. Finalmente pudemos declarar guerra contra alguém! Estamos em guerra, dizem os nossos governantes! Macron falou inclusive do inimigo invisível que temos de derrotar... Por fim arranjámos um inimigo para voltar a erguer muros e fechar fronteiras.
Parêntesis: ainda assim, considero este pânico primeiro-mundista algo desmedido. Vê-se que estamos pouco habituados a viver em terror permanente. Se tivéssemos tido mais epidemias, ou guerras, ou os dois, não dramatizaríamos tanto a situação! Na realidade, acredito que carecemos de epidemias, esse é o nosso grande mal.
Obrigado coronavírus por me mostrares que a nossa sociedade é pacífica (demais). Pessoalmente, faço para que não seja. Já não sei quem disse isto: «antigamente o Estado mandava-nos para as trincheiras, hoje em dia manda-nos para o sofá». Assim, e (paradoxalmente) graças ao Estado, tenho mais tempo para populismo de sofá.
Dia 20 de abril de 2020, geração da “desatenção”
hoje tentei ouvir a conferência da Christine De Smedt organizada pela associação O Rumo do Fumo, via Zoom. Aborreci-me bastante rápido e dei de frosques. É isso que é bom no digital, não há aquele incómodo todo quando queres sair da sala, nem precisas de pedir licença para passar, nem de sustentar conversas da chacha à saída ou no foyer: o sonho de qualquer espetador emancipado.
Uma amiga minha também se aborreceu, mas preferiu tirar o som, o que equivale a tapar os olhos durante um espetáculo. Já viram alguém de olhos tapados durante um espetáculo?
Outra amiga minha deixou o som, mas baixou-o, tem a vantagem de não termos de perder tempo, podemos ouvir a conferência e continuar a fazer outras coisas, com um burburinho performativo de fundo.
Durante esta quarentena, o jejum de espetáculos tem sido muito relaxante, uma espécie de ramadão do sentimento estético, até começo a sentir que vejo melhor, com olhos de ver.
Infelizmente, não ouço nada – ou muito baixinho.
Dia 21 de abril de 2020, estamos numa fase da História (com “H” grande) onde há uma tendência para uma insistente contemplação lírica, os poemas sobre a covid-19 e o coronavírus SARS-CoV-2 proliferam (o Manuel Alegre escreveu um que se tornou viral nas redes sociais). Portanto, decidi escrever eu também o meu próprio poema: ----
Cheira
bem, cheira a Lisboa em quarentena
- porque os níveis de poluição baixaram drasticamente, ena!
Que bom, o planeta vai regenerar
É o que dizem, mas eu acho que vai levar uma coça quando a máquina capitalista reiniciar
O país de repente está vazio
E a minha casa cheira ligeiramente a bafio
Porque estou em casa isolado
Mais ou menos, estou com uma quarentona, uma menor e um felino levado do diabo!
Tentei dar uns passeios de curta duração para respirar
Mas há por aí uns estafermos que nos perseguem e nos querem controlar
E por isso pus-me a escrever
É a forma que encontrei para espairecer
Não estou armado em escritor
Até porque a minha profissão é a de bailarino-performer-coreógrafo-vendedor
Mas sobretudo neste momento estou de férias a trabalhar
Eu sei, parece contraditório, mas é uma fórmula que encontrei para continuar
Com isto quero-vos dizer que não vai ficar tudo bem
Não acreditem na banha da cobra que nos andam a vender, tá bem?
E acabei de rimar “bem” com “bem”
O que mostra “bem” que não tenho jeito nenhum para versos, rimas e Santarém
Acabei de colocar Santarém no último verso
Na tentativa de abortar rapidamente este poema perverso
Acho que é altura de dar de frosques
Cuidado, andam por aí uns pangolins, morcegos e infelizmente nenhum Robim Dos Bosques
- porque os níveis de poluição baixaram drasticamente, ena!
Que bom, o planeta vai regenerar
É o que dizem, mas eu acho que vai levar uma coça quando a máquina capitalista reiniciar
O país de repente está vazio
E a minha casa cheira ligeiramente a bafio
Porque estou em casa isolado
Mais ou menos, estou com uma quarentona, uma menor e um felino levado do diabo!
Tentei dar uns passeios de curta duração para respirar
Mas há por aí uns estafermos que nos perseguem e nos querem controlar
E por isso pus-me a escrever
É a forma que encontrei para espairecer
Não estou armado em escritor
Até porque a minha profissão é a de bailarino-performer-coreógrafo-vendedor
Mas sobretudo neste momento estou de férias a trabalhar
Eu sei, parece contraditório, mas é uma fórmula que encontrei para continuar
Com isto quero-vos dizer que não vai ficar tudo bem
Não acreditem na banha da cobra que nos andam a vender, tá bem?
E acabei de rimar “bem” com “bem”
O que mostra “bem” que não tenho jeito nenhum para versos, rimas e Santarém
Acabei de colocar Santarém no último verso
Na tentativa de abortar rapidamente este poema perverso
Acho que é altura de dar de frosques
Cuidado, andam por aí uns pangolins, morcegos e infelizmente nenhum Robim Dos Bosques
Respirei de alívio, aproveitei para procurar o chocolate de leite extrafino Moser Roth, senti que me acalmaria vislumbrá-lo, o desmame em geral não tem sido fácil, este policiamento drónico é de facto sinistro, todos estes drones voando fantasmagoricamente pelas nossas cidades e a ordenarem-nos «vá para casa» causam-me calafrios.
Quando saí do supermercado, já lá não estava, mas a sua presença espetral seguiu-me até casa, e mais, entrou-me pela casa adentro. Suspiro. Felizmente agora tenho o consolo da minha tablete Moser Roth. Sou um consumidor carente.
Dia 23 de abril de 2020, depois do episódio “mini-helicóptero do terror” de ontem, os seres volantes voltaram hoje a assombrar-me. Um pombo resolveu aterrar no parapeito da nossa janela da sala. Permaneceu imóvel durante o que me pareceu uma eternidade, a olhar-me nos olhos, virando apenas a cabeça esporadicamente e de forma repentina, como o fazem todos os pombos, mas sem perder o meu olhar. Senti que estava a fazer troça de mim, sempre tive um medo danado daqueles pássaros, chamem-lhe paranoia hitchcockiana, troça de mim e de toda a nossa espécie, afinal de contas os seres volantes enrabaram-nos profundamente. Passo a explicar:
o morcego tramou-nos, ao disseminar este vírus; depois, a propagação do vírus obrigou-nos a diminuir drasticamente a circulação aérea de aviões; e pouco a pouco os pássaros, aves e seres do céu têm vindo a reivindicar os seus direitos sobre o espaço aéreo, pode dizer-se que a natureza em geral está a aproveitar para reaver o seu território, reocupando provisoriamente o ar, o mar e a terra: os peixes nos canais de Veneza, os pássaros nas grandes cidades... Num zoo em Hong Kong um casal de pandas conseguiu finalmente copular após a proibição de visitas devido ao coronavírus, há animais que apreciam um bocadinho de privacidade e de tranquilidade, melhor dizendo, alguns animais tinham perdido a vontade de trocar carícias e de procriar por nossa causa.
Neste enredo de luta das espécies, não posso deixar de sentir que o abominável pombo me está a tentar enviar um sinal, apesar de tudo, o pombo é um animal que sempre foi domesticado para entregar correio, e mensagens em geral. Aliás, alguns pombos-correio desempenharam papéis importantes durante tempos de guerra, e receberam prêmios e medalhas por terem ajudado a cumprir missões que salvaram centenas de vidas humanas! E como têm dito pessoas respeitáveis um pouco por toda a parte, isto são tempos de guerra…. Devemos voltar a depositar confiança nos pombos? Devemos restabelecer a paz e a colaboração com estas aves?
Nisto, o pombo levantou voo, e retribuindo o meu convite ao diálogo, soltou um rasto de merda esverdeada para cima do parapeito, esvaziando ainda mais o céu.
Dia 24 de abril de 2020, mais um passeio de “curta duração”, a dada altura sentámo-nos num banco de jardim, a B. começou a brincar com o musgo depositado entre as frestas do banco, incrível, a vida prolifera nos mais pequenos recantos. A extinção do homem não me preocupa muito, haverá sempre organismos e microorganismos a sobreviverem e a reproduzirem-se no planeta Terra.
Mas talvez esteja enganado. Li há uns tempos um artigo sobre a hipótese de que o planeta Marte tenha sido outrora um planeta empanturrado de vida biológica, verdejante tal como a Terra, e de que pouco a pouco, por razões que nos são desconhecidas, a vida se foi extinguindo até tornar Marte num planeta morto. Mas ao contrário dos seres humanos, os astros não se extinguem ou decompõem rapidamente após morrerem, e, portanto, hoje assistimos a um cadáver em órbita à volta do Sol…
Como será ser cadáver em órbita?
E concluo com um dito de Bachelard: «Precisávamos de uma psicanálise cósmica, uma que abandonasse por um segundo as considerações humanas e se preocupasse com as contradições do Cosmos.»
Dia 25 de abril de 2020,
EU - Hoje?
A. - Hoje é um dia importante.
Dia 26 de abril de 2020, politiquices e darwinismo,
hoje consultei a minha conta-poupança, devo conseguir viver mais uns mesinhos sem me preocupar muito com esta paragem forçada, a minha hérnia discal lateja, o meu corpo vai ser o primeiro a desistir desta quarentena. Antes do meu porta-moedas. «Que sorte», dirão alguns.
Enquanto a Suécia escolheu a via do darwinismo biológico, deixando à mercê das imunidades individuais a rota do coronavírus na sua sociedade, em Portugal o darwinismo social tem ganho cada vez mais expressão, estou convencido que está intrinsecamente ligado aqueles “justiceiros de varanda”: os que melhor resistem a esta seleção natural são os mesmos que vemos à varanda policiar os demais.
O darwinismo social defende, segundo a Wikipédia, a « luta pela existência e sobrevivência dos mais aptos, para justificar políticas que não fazem distinção entre aqueles capazes de se sustentar a si e aqueles incapazes de se sustentar », segregando assim os pobres, os desqualificados e os marginais socioeconómicos. Em Portugal, está a ganhar expressão numa ideologia que teima em tratar qualquer opositor de ‘tachista’ (tratar outra pessoa de “tachista” por defender um Estado social é um bocado como tratar de “violador” qualquer pessoa que goste de sexo) ou pior, ‘subsídio-dependente’ (um insulto que abrange todos os trabalhadores que direta ou indiretamente, laboram com fundos – e não necessariamente subsídios - provenientes do Estado; abrange todos os trabalhadores menos polícias, bombeiros, forças armadas, que são essenciais para conter qualquer tipo de entropia) - e o mais irónico é que neste momento de crise covidiana quase todos passámos a ser “subsídio-dependentes”. Ainda assim o darwinismo social está de boa saúde.
É uma espécie de meritocracia infalível e fundamentalista, em que as noções de mérito, de aptidão e de evolução, são sempre consideradas segundo os critérios considerados melhores à época. E aqui está o busílis da questão: ‘os critérios considerados melhores à época’. O social-darwinismo é sempre uma manifestação social e política da eugenia - em Portugal isso materializa-se na crença de que existem ‘portugueses de bem’ ou ‘bem-nascidos’, os que são “capazes” no fundo, e depois há os outros -, é sempre uma limpeza das ‘minorias’ pela ‘maioria’ que detém os critérios considerados melhores à época. Daí vermos tanto este termo de ‘maioria adormecida que está a despertar’ no discurso do social-darwinismo português.
Estes critérios – que são obviamente contextuais – servem para legitimar ódios, ressabiamentos e segregações: ódio aos intelectuais e pensadores; ódio aos pobres e aos desempregados que beneficiam de apoios sociais; ódio aos refugiados e imigrantes precários que beneficiam de alojamentos sociais; ódio aos políticos como representantes duma classe privilegiada e ociosa que vive da “mama” do Estado; a convicção de que o Estado Social impede o laissez-faire propício para tornar o cidadão mais ‘apto’ e mais ‘evoluído’ e para recompensar os que merecem, “o português comum” que verdadeiramente trabalha, como muito se ouve por aí…
Muito antes do confinamento, alguns pensamentos já cheiravam a ambiente fechado – o famosíssimo mofo político.
Dia 27 de abril de 2020, hoje recebi mais um spam, desta vez francês (parece que consto nas listas internacionais da prostituição cibernética, a minha libido não tem fronteiras), a convidar para o deboche, do endereço Plan Cu Facile (Foda Fácil), que termina com a seguinte opção, um apontamento que surge no fim da página, em letras pequenas:
«Para uma ereção de qualidade, clique aqui para obter mais informações.»
Não sabia que havia ereções de qualidade variável. Para mim, uma ereção sempre foi uma ereção. Dura, dilatadora, irrigadora, regozijante e acompanhada de excitação sexual, sensual e sensorial, neurologicamente fundamentada com certeza. Mas devo ser um leigo em ereções. Quiçá haja ereções de qualidade duvidosa, ou ereções topo de gama, ou até ereções desonestas, que são obrigadas a recorrer a substâncias químicas para ocorrerem. Quiçá haja também ereções efémeras, talvez seja a isto que se referem, ereções que perdem a sua dureza assim que entram em contacto com alguma mucosa, deve ter a ver com isto, com a endurance da ereção, a sua durabilidade.
Pessoalmente, tenho recorrido mais do que habitualmente ao Pornhub, e tenho a sensação de que não sou o único. No dia 17 de março, o tráfego mundial no Pornhub aumentou 26,4%!!! Creio que nunca na história da humanidade tenha havido tantos seres humanos a masturbarem-se simultaneamente. E a indústria percebeu isto a montante. O Pornhub decidiu oferecer gratuitamente a toda a população italiana o seu serviço Pornhub Premium durante a quarentena e o teletrabalho, aproveitando esta fase para fidelizar clientela, e criar valor a médio e longo prazo. O porno vive principalmente do isolamento do indivíduo, da insociabilidade, e até duma certa misantropia erótica (« antes tu do que eu, mas alguém tem de o fazer querida »), dum sadismo fantasmagórico (« tu dás a cona à câmara nuns estúdios frios para eu me esvaziar em casa, no quentinho ») e egotista (« eu sou sempre o personagem principal e tu és a minha convidada do dia, tá? »).
As pessoas andam com medo, e isto tudo se acentua sub-repticiamente, a misantropia, o sadismo, o egotismo: recorrem à masturbação como escape existencial, como prática de catarse. É preciso explorar esta reação pandémico-masturbadora à luz da teoria da gestão do terror, como um mecanismo subconsciente para lidar com o medo de contágio, e a morte. No fundo, e voltando à ideia já consensual de que estamos em guerra, o Pornhub age como escudo de defesa e proteção perante uma hipotética mortalidade.
Além de as pessoas estarem a consumir mais pornografia, os dados métricos do Pornhub também « informam que há pelo menos 9 milhões de pesquisas relacionadas com a palavra "coronavírus" e há pelo menos 1000 vídeos que surgem nessa pesquisa ». Surpreendentemente, ou não (!), evidencia-se, nestes vídeos, o recurso a máscaras, viseiras, luvas cirúrgicas e outros materiais de proteção individual. Assim, a indústria soube capitalizar com rapidez a necessidade de erotizar o medo. Graças à fetichização do bicho, os lucros vão fluir e atores porno, camgirls e prostitutas cibernéticas vão beneficiar de aumentos mais do que justos nos rendimentos.
Mas não percamos isto de vista como consumidores conscientes que somos: nestes tempos que exigem resiliência, convém enfrentar a quarentena com uma ereção resiliente, porque há muito por onde escolher.
Dia 28 de abril de 2020, hoje li um artigo bastante deprimente do José Gil que apareceu no Público há uns tempos, ‘A Pandemia e o capitalismo numérico’. A ideia central é a de que andamos a viver desterritorializados, num nomadismo que não ancora em lado nenhum. Segundo o autor, e por causa desta quarentena, esta desterritorialização está a concretizar-se por meios digitais, porque é a única forma que encontrámos de sustentar o nosso sistema económico-capitalista. Esta dinâmica de virtualização da desterritorialização já vigorava, mas esta crise e este confinamento vieram catalisá-la.
Enquanto escrevo isto o meu olhar recai sobre um postal da Associação Zé dos Bois, que tenho em cima da secretária, que diz o seguinte: « perna dormente acorda do torpor do ecrã ». A leitura desta frase – e a escrita desta - reterritorializam-me.
Olhem o meu corpo. Está aqui agora!
Dia 29 de abril de 2020,
Hoje cozinhei, servi refeições, lavei a louça, limpei e arrumei a casa toda, troquei fraldas, dei banho…. Dói-me o corpo todo. Dói ser trabalhador doméstico. Difere muito das danças psicossomáticas a que estou habituado.
Dia 30 de abril de 2020,
EU – Pergunto-me: quando passo pelas pessoas na rua, como olho para elas?
…
…
A. – De máscara?
Dia 1 de maio de 2020, hoje, uma filosofia do repouso.
Dia 2 de maio de 2020, hoje revi o filme Groundhog Day em que o personagem principal, interpretado por Bill Murray, é condenado a viver o mesmo dia vezes sem fim. Na altura, quando vi o filme pela primeira vez, adorei, mas só agora percebi, na pele, a real dimensão do argumento.
É que neste momento sinto precisamente isso – que estou a viver o mesmo dia vezes sem conta. E se esta quarentena se prolongasse? E se tivéssemos de produzir os mesmos gestos infinitamente – lavar as mãos, abrir o frigorífico, cozinhar, ligar a televisão? Não será necessário diversificar os gestos, de forma a preservar a saúde mental? Como viver sem a mínima diferença, sem improvisação, e sem mudança?
A possibilidade de o provisório se tornar definitivo - não é esse o nosso pior medo?…
Creio que o ataque à prisão temporal causada por esta quarentena exige uma postura zen: como viver de forma a estar pronto para reviver cada segundo? Como dar um sentido ético-estético a tal repetibilidade existencial?
Talvez a resposta se encontre no conceito do Infra-ordinário, desenvolvido por Georges Perec:
«O que acontece a cada dia e que sempre retorna, o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infra-ordinário, o ruído de fundo, o habitual, como dar conta disso, como interrogá-lo, como descrevê-lo?
[…]
Como falar dessas "coisas comuns", ou melhor, como cercá-las, trazê-las para fora, arrancá-las da casca onde estão presas, como dar-lhes um sentido, uma língua: que elas falem enfim do que é, do que somos.
Talvez se trate de fundar finalmente a nossa própria antropologia: aquela que falará de nós, que irá procurar em nós aquilo que durante tanto tempo pilhámos dos outros. Não mais o exótico, mas o endótico.»
No filme Groundhog Day, o personagem principal passa por uma espécie de processo de redenção (não deixa de ser um filme embebido de moralismo cristão) e à medida que o tempo passa – ou não passa, neste caso – Bill Murray vai-se tornando cada vez mais generoso e dedicado à comunidade, e num coup de théâtre, isso liberta-o do loop temporal em que se encontra. Pergunto-me: será o altruísmo a nossa única saída? Não será possível obtermos a redenção com uma posição ética mais trivial: a de dar tempo ao tempo, por exemplo?
Não esqueçamos que passaram muitos dias até o personagem principal atingir a redenção, muitos dias em que se dedicou a roubar, a maltratar e a suicidar-se de diversas formas. O caminho do altruísmo pode ser doloroso. Será o caminho infra-ordinário menos doloroso?
Dia 3 de maio de 2020, hoje rocei acidentalmente os dedos da mão direita numa cicatriz que tenho no antebraço esquerdo. Como milhões de outras pessoas, carrego no antebraço a cicatriz da BCG, a vacina que quase erradicou a tuberculose. Talvez nunca me tenha apercebido tanto como hoje do papel discretamente decisivo dos microscópios, dos anticorpos, das vacinas. Pasteur disse: «Eu acredito invencivelmente que a ciência e a paz triunfarão sobre a ignorância e a guerra.» Bom, acreditar não mata.
Entretanto, entrei em pânico, sou um alarmista, um apoquentado crónico, a minha filha não levou a vacina BCG, na altura a médica disse-nos que hoje em dia não era preciso, que a tuberculose estava erradicada, mas numa rápida pesquisa que fiz hoje no google, fiquei a saber que não só a tuberculose não foi erradicada, como apareceu uma estirpe hiper-resistente a antibióticos.
Nisto, e como sou um histérico descontrolado, pergunto à A. se não será melhor ligar à pediatra, para sabermos o que fazer. Ela franze a testa, e deixa passar uns segundos antes de responder: «tu sabes muito sabes».
No amor, tudo o que vai volta, né?
Dia 4 de maio de 2020, não percebo o que andam para aí a dizer de que esta quarentena vai ser péssima para os casais, que o número de divórcios vai disparar. Eu estou recluso em casa com a A., só a quero foder a ela, só a fodo a ela, ando sempre ridiculamente atrás dela, completamente monogâmico, pareço um morcego atrás dum pangolim, a tentar vampiricamente atraí-la a mim, quero enchê-la de bactérias e misérias, vingo nela toda a falta de contacto físico, a minha tusa por ela está no pico e no planalto, se tivesse mais poder de compra fazia-lhe vinte filhos, a concorrência feminal que ela tinha desapareceu, agora o meu pau é um devoto fiel, pode-se dizer que ela é a mulher da minha vida porque neste momento é mesmo a única, e quando vou ao supermercado as mulheres estão todas de máscara, não lhes consigo ver a boca, os lábios, o nariz, as redondezas da face, as zonas erógenas todas escondidinhas, o encobrimento só me atiça mais a tesão...
Felizmente agora há uma nova indústria a surgir, a da máscara cirúrgica como acessório de moda incontornável.
Agora há captação de investimento na erotização da máscara cirúrgica.
Sempre se inventarão desejos novos!
O capitalismo é eroticamente resiliente 😀️
Dia 5 de maio de 2020, hoje envelheci, tal como todos os dias, envelheço todos os dias, mas em geral não sinto que envelheço, hoje foi um dia em que senti mesmo que envelheci, provavelmente porque não fiz nada hoje, não fiz nada além de envelhecer, passei o dia todo a envelhecer, comecei o dia era uma criança, à hora do almoço já tinha entrado na idade adulta e ao deitar-me era um velho, no grupo de risco portanto, muito cuidado, disse-me a A., cuidado com o envelhecimento, muito cuidadinho com o envelhecimento, é arriscado, é arriscado envelhecer assim e entrar-se no risco, envelhecer é arriscado, é mais arriscado do que rejuvenescer, e não é tão bem visto, envelhecer é mal visto, as pessoas encaram mal os velhos, hoje senti-me mal encarado, muito provavelmente porque envelheci o dia todo, e as pessoas encaram mal pessoas que envelhecem o dia todo, encaram-nas como ameaças, os que envelhecem ameaçam os que não envelhecem, lembram-lhes que é sempre possível envelhecer, é uma possibilidade, é possível envelhecer, o envelhecimento está sempre aí à porta, ding dong, tal como a morte, e ninguém vai à porta, ninguém quer ir à porta, erguem-se barreiras, e por isso quem envelhece vai-se isolando, quem envelhece empreende o caminho da solidão, entra em processo de despovoamento, hoje envelheci mas também (me) despovoei, e o mais irónico é as ruas estarem despovoadas, como eu, os centros comerciais estarem despovoados, como eu, os parques estarem despovoados, como eu, os teatros estarem despovoados, como eu, e ainda assim, consegui despovoar a minha casa comigo cá dentro a despovoar-me, consegui despovoar tudo à minha volta até criar um grande buraco negro de merda, mas não deixo de envelhecer como velho que sou, até que o ânus me engula as tripas, numa sodomia inversa.
Dia 6 de maio de 2020, hoje calo-me, dou a voz ao Artaud: « Afirmo-lhes que se reinventou os micróbios afim de impor uma nova ideia de deus, descobriu-se um novo meio de fazer ressurgir deus e de o tomar sob a sua nocividade microbiana: enterrando-o no coração, que é onde os homens o preferem, sob a forma de uma sexualidade malsã, daquele sinistro ar de mórbida crueldade que ele ostenta sempre que como agora lhe apraz tetanizar e aterrorizar a humanidade.»
Dia 7 de maio de 2020, meditações pelo cu
hoje a A. veio-me ao cu, que delicioso, é aproveitar, acontece algumas vezes, menos do que eu gostaria, mas pronto, não se pode obrigar uma mulher a nada, nem a ir ao cu a um homem. Há uns tempos li um artigo do Le Monde, de cariz sociológico, parece que a sodomização do homem pela sua mulher é uma prática aristocrática, as classes populares não têm tempo nem imaginação para tal coisa…. Será que esta quarentena vai servir de ascensor social no que diz respeito à inversão de papéis na prática sodomita, e não só na limpeza da casa e da louça? O prazer anal devia ser moralmente acessível a todos, independentemente do rendimento das pessoas: sou pela universalidade da analidade!
Deixem-me explicar: o artista vive dependente dos programadores, diretores de teatros e festivais e agentes culturais, sem os quais se torna impossível a criação de projetos e a sua circulação. Até aqui tudo bem. Mas o problema é o seguinte: o artista insere-se num mercado sobrelotado, no qual há muitos fornecedores – os artistas - e poucos clientes - os programadores. Estes têm, portanto, um poder imenso no mercado. O programador tem muitas opções, e cada artista tem de dedicar um esforço maior a marketing, distribuição e produtos auxiliares de comunicação. Há tantos fornecedores – artistas - com produtos similares que fica difícil diferenciá-los no mercado, assim o cliente – o programador - é quem ‘manda’.
Os programadores são hoje em dia uma espécie de caçadores de talento, comparáveis aos olheiros no futebol, ou aos business angels no universo Start-up. Ou, recorrendo à gíria mafiosa, são os godfathers disto tudo. São também um gênero de ASAE da arte: certificam-se de que os produtos apresentados estão em conformidade com a procura – têm a noção de que trabalham para o “seu público” e tentam prever o que ele deseja (alguns não precisam de prever, já sabem de antemão). A ideia de que o programador “descobre” o talento dos artistas subentende também que o artista vive, e deve viver, na escuridão, só assim a sua arte é suficientemente bruta (escuridão que muitas vezes rima com precariedade).
Desta maneira, os artistas são obrigados a investir na prospeção de novos clientes. A isto chama-se a caça aos programadores – foi o meu dia de hoje. Tedioso, mas sem grandes riscos. Por vezes, há jogadas arriscadas que comportam custos maiores – como investir em alguém que faça este trabalho por nós -, mas pode ser recompensador a longo prazo.
A arte é altamente competitiva, e o darwinismo social é especialmente forte nesta área. O número de pessoas que desistem é enorme, a pressão também. No fundo, só os mais fortes, ou os mais alienados, ou os mais masoquistas, ou os mais competitivos, ou os que têm outras fontes de rendimento (ou os que reúnem um bocadinho disto tudo) é que encontram nesta área a sua felicidade. Os artistas são hoje em dia uma categoria de atletas de alta competição, física e psicológica: a sua vida depende literalmente da sua visibilidade no mercado de trabalho.
O artista é o modelo exemplar do empreendedor freelance.
Creio que a questão de fundo tem que ver com o espaço: os artistas estão despossuídos do seu espaço primevo de trabalho, o teatro. Bem sei que ainda há artistas que gerem os seus teatros. Mas a maior parte dos artistas são nómadas, itinerantes. A única forma de dar vazão ao excesso de oferta é programar poucas apresentações por grupo artístico – no caso da dança, duas no máximo, muito raramente três. E assim assistimos atualmente a uma sucedânea frenética de obras apresentadas, muitas das quais passam despercebidas.
Jorge Silva Melo esclarece-nos: «As peças que fazemos têm cada vez menos implicação na vida das pessoas. Neste momento, são acontecimentos que se sucedem – este mês, a peça a ir ver é esta; naquele mês, é aquela. Agora é giro ver este ou dizer mal daquele. […]
O teatro está a ser o que as conferências eram no século XIX: um acontecimento mundano para trinta, quarenta pessoas, com palmas, com provocação ou não, mas sempre para uma elite da elite, que adormecia enquanto o conferencista falava…».
Para contrariar as salas vazias ou ocupadas somente pela “elite da elite" – da qual eu faço orgulhosamente parte -, os teatros investem na formação e na sensibilização de públicos: expressões bem-parecidas e politicamente corretas para dizer criação de procura. Constituem manobras de marketing para levar as pessoas a consumir arte, destinadas a contextualizar e a assegurar o público; assegurar nos dois sentidos da palavra: dar-lhe segurança, e assegurar que ele volta.
Desta maneira, o teatro tem-se tornado, lentamente e impercetivelmente, um lugar de “contextualização” que se assume como fiador intelectual e moral do espetador – no fundo um intermediário benevolente na experiência estética. A ideia de teatro como buraco negro carregado de insegurança, de risco, de confusão, de incompreensão, de perda, e até de delírio, evaporou-se.
Pergunto-me: onde está o vírus do teatro?
Dia de spam-merda.
Dia 10 de maio de 2020,
EU - Se continuarmos esta quarentena durante muito mais tempo, não haverá dinheiro para espetáculos.
A. – E então? The show must go on?
…
EU – Sabes que há pessoas que querem assistir ao nosso trabalho, não sabes?
A.- hmm.
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